Há quem imagine que a solidão escolhe aposentos sombrios onde possa aninhar-se para se esconder de luzes importunas e do assédio de mentes e corpos preenchidos em seus desejos e sonhos.
Andei céus e terras por esse mundo de Deus, e desci aos seus infernos.
Nesses caminhos da vida encontrei trechos repletos de esperanças, espaços férteis de felicidade, terras áridas de alegria, planícies floridas de amor, montanhas de almas de pedra, e tristezas oceânicas.
A visão das vidas humanas que despontaram a cada passo do meu percurso, inevitavelmente levou-me a enxergar, no espelho dos passageiros do mesmo caminho, a reprodução de minha própria face.
Todos rimos e choramos nossas dores e alegrias, ocultas ou ostensivas, velhas companheiras irmanadas pelo paradoxo das lágrimas, veios da mesma nascente, expressão de sentimentos aparentemente tão desiguais.
Mas, às vezes, o cenário e o personagem causaram-me a errônea percepção de ver a solidão que em verdade não existiu.
Certa vez havia um homem, envelhecido, de aparência triste e cansada, debruçado sobre uma pequena mesa de um bistrô, à beira de um livro aberto. Seus olhos, a olhar o vazio e o longe, estavam desatentos à leitura, e suas mãos não folheavam o livro.
Tive pena do bom camarada, imagem de mim mesmo, e tive pena de mim. Também eu estava ali, em outra mesa, pouco distante dele, falando de coisas graves e banais com meus pensamentos dispersos, exilado e solitário.
Foi aí que ela entrou, imperceptível, até eu ver sua mão, esguia e pálida de frio, tocar os cabelos grisalhos de meu velho camarada, e ele, de modo natural e íntimo, recebeu-a, e lhe falou com sua voz mansa, palavras necessárias e exatas, como convém, diante de uma mulher bem-vinda.
Talvez meu coração solitário tenha criado a ternura, o enlevo e a magia do encontro entre o homem e a mulher, que pode ter sido apenas a execução de uma rotina vulgar, um momento formal, uma conversa estéril, ou um negócio qualquer no meio da tarde.
Com o olhar do sentimento, a gente vê cenários imaginários, personagens irreais, e eles inspiram a ficção transformada em verdade. Distanciado da razão e da mente, nas horas de solidão, o coração vê. E, repetidamente, se engana.
Talvez tenha sido também errônea, uma outra percepção de meu sentimento quando passei naquela ruazinha estreita e deserta, onde somente a porta de uma pequena livraria antiga estava aberta, naquela tarde cinzenta, em Paris.
Saído do movimento febril das ruas do Marais, embrenhei-me num caminho desenhado por fachadas antigas, onde o silêncio permitia apenas o rumor de meus passos nas calçadas de pedra.
Parei para contemplar as janelinhas e portas fechadas, como se ninguém existisse além delas, exceto os lugares de que falei antes, escolhidos pela solidão como morada.
De repente, aproximou-se uma mulher quase invisível no seu denso casaco marrom, com um chapéu a lhe cobrir a cabeça e o rosto. Ela passou por mim como se atravessasse a minha alma vã, abriu uma pequena porta que se fechou para sempre guardando o seu vulto.
Recomecei a caminhar com a vaga impressão de ter visto minha solidão corporificar-se diante de mim para ocupar seu lugar em algum dos aposentos escondidos atrás daquelas paredes antigas.
Mas meu pensamento se dissipou. Certamente, à margem de meus delírios, quem passou por mim não foi a solidão. Foi uma criatura comum, voltando à sua casa, porto onde lança âncoras, cais de seus encontros humanos, e de onde parte para viagens no oceano de uma vida que não adivinho, que não conheço, e que não me diz respeito.
Em verdade, a solidão não se mostra explicitamente. E não avisa quando vai chegar, nem quando vai partir.
Vicente Cascione
Vicente Cascione
fonte: http://cascione.blog.uol.com.br/
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