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terça-feira, 20 de dezembro de 2011

PARTO


Nasceram pessoas dentro de mim. Não foi como numa tempestade destas que se faz notar antes que chegue para arrasar as terras, uma tempestade que se avisa no céu fechando, no vento aumentando sua voz, no pingo anunciante da chuva. Não. Foi de repente, como se num instante sol, noutro granizo.


Um dia, nasceram pessoas em mim.

Há uma bailarina muito branca de sapatilhas entrelaçadas nas entrelaçantes pernas que cruzam meu umbigo. Tem o cabelo negro e arrebatador e chora por um olho só quando eu canto as minhas histórias de amor impossível. Ela dança, dança, dança, dança como se dançar provasse alguma coisa, remediasse alguma coisa, costurasse alguma coisa. Ela dança.

Um dia, nasceram pessoas em mim.

Há um bêbado de boné quadriculado que me oferece tragos na vista larga do meu ombro esquerdo. Ele se senta lá, olha esse horizonte de mim que nunca, nunca se afirma, e diz que ainda alcança, com o torno de seu braço que a vida desenhou, uma ilha que ele vê longe. O bêbado, este bêbado que quer me embriagar aos poucos, planeja fugir num navio de sereias. Eu sei. E dói.

Um dia, nasceram pessoas dentro de mim.

Há uma noiva que me comunga. Veste branco dolorido e troteia a nave que vai das minhas coxas ao vale dos seios. Desta, invejo a castidade da crença, a lisura do buquê amor-perfeito e dos doces bem-casados. Eu a invejo em palavras duplas. Ela grinalda o que me resta de noite e penso que adormeço (só penso, eu nunca adormeço). A noiva me prende o anelar esquerdo ao seu - aliança dourada - e diz “vem”, como se seguir fosse possível além daqui.

Um dia, nasceram pessoas dentro de mim.

Há um vilão, um assassino que esconde entre as minhas costelas uma lança afiada. Nada diz, mas sorri enquanto eu sangro. E mais sorri. E mais eu sangro. A tortura é cálida em expressar paixão, eu sei e você sabe, e eu me devoto. Há um vilão que me ama. Que eu odeio. Entre as minhas costelas, o mundo de assalto, o crime pego de surpresa. Há um vilão que me odeia. Que eu amo.

Um dia, nasceram pessoas dentro de mim.

Há uma menina. Ela lê um livro e nunca me mostra. Não sei da capa, nem dos versos, nem da epígrafe, nem do meu provável epitáfio. Ela vira páginas, faz pilhéria da minha ignorância, rouba um afago do meu cabelo loiro e convida meus dedos para brincar. Não é triste, nem é sábia. Só lê e troça, a menina, numa história que vai enredando finais, que vai se contando. Trincheira por trincheira, arma de verbo na mão, guerra no fim, a menina.

Há outros. Há multidões que me lambem o cárcere das veias.

Em mim, jazem pessoas.

Giovana

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