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quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

O ENCAIXE DA ESTRELA




O aprendizado das formas é talvez um dos mais fundamentais em nosso humano repertório de conhecimentos. Toda vez que tento adivinhar pelo tato as chaves da casa na desordem da bolsa, acesso inconscientemente o brinquedo de poliedros coloridos da infância. Havia que se encaixar a estrela na ausência da estrela, donde mais tarde concluí que nenhuma forma se prestava a preencher o vazio da outra.

O avô foi das primeiras formas de encaixe que aprendi. A barriga redonda provia colo ergonômico, aliciador ao sono, embora sobrasse sempre pouco tempo para demoras de contato, a casa sempre tumultuada de gente. Dera nisso a difusão de suas quinze sementes: uma safra abarrotada de risadas de netos.
Na casa do avô todos os cômodos eram permitidos, salas-de-ser e de estar. Como desconfio que era a própria alma descompartimentada do patriarca. Mais do que um homem do campo, o avô era campo.

À falta de braços para abraçar toda a gente, o avô engendrou a invenção do olhar, que dizia coisas nítidas como palavras. A ele, portanto, devo também a primeira vivência dessa experiência fundamental nas interações de afeto: a cumplicidade. Que é a linguagem do invisível dentro do discurso do óbvio. A criptografia do encanto. Quando nos cutucava a moleira com a britadeira dos dedos, os olhos sorriam-lhe delatores da mão agilmente afastada. Sempre queria ser "pego" o avô, facilitava os flagrantes. E seu mistério nem por isso se desfazia.

Outro tesouro que guardo dele foi quando se recusou a ouvir a canção da Tapuia na versão esganiçada das netas, que lhe prestavam – riqueza nossa! – companhia no dia da cirurgia da avó. “Ah, essa música não... Essa só presta na voz da Maria”. E assim revelava-nos o grande truque da longevidade de seu casamento de ouro: cultivar as pequenas ternuras, como uma falta doce dentro do ter, que nos belisca da comovente impermanência do outro e de seu brilho. A partir dali eu desconfiava que, reversamente, o amor morria de inanição quando se perdia a capacidade de se enternecer.

O avô partiu pródigo de doçuras. Sim, o avô era também um gosto e um tempero. De modo que a saudade dele ainda hoje se faz em mim como uma espécie úmida de meio-sorriso sob o leque dos cílios. É minha contra-senha secreta ao aceno de sua memória. Dentro de mim, na desordem de mim, reconheço ainda as chaves dos saberes que me legou. Abrem-me portas por dentro. Permitem-me avançar no caminho.
Hoje eu conto o avô para revivê-lo. Por não saber amá-lo sem entrega, o que vem a ser modelo seu. Essas palavras são a minha colheita desmedida de pimentas.   

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