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segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

O PEDREIRO QUE TRICOTAVA

É pouco provável que o pai do leitor ou da leitora saiba tricotar.
Trabalho, passatempo, vício, tricô é coisa de... mulher.
Meu pai, com suas mãos ásperas de operário da construção civil, ignorou esse estigma e aprendeu a dominar as agulhas de tricô. O fio de lã, passando de uma agulha a outra, permite a execução de dois tipos de ponto que servem de base a grande variedade de padrões, define o “Aurélio”. Mas a leitura do dicionário é insuficiente para alguém aprender a fazer; é preciso prestar atenção em outra pessoa que já tricota, depois treinar e treinar.
O início, para ele, foi por acaso, numa das longas fases de afastamento do trabalho motivadas pela doença de Chagas, que o levaria desta vida antes dos 60 anos.
Uma de minhas irmãs treinava com as agulhas, enquanto meu pai lia o seu jornal kardecista. Um olho nas páginas, outro nas mãos da filha, nas agulhas que iam e viam, depois voltavam ao início formando a teia.
Nos dias seguintes ele continuou a observação, sempre sentado na mesma cadeira diante da filha. Aprendeu todos os detalhes: a posição das mãos, a altura em que deveria manter a peça diante dos olhos, a trajetória das agulhas, seus volteios, quando fazer inserção única ou dupla nas carreiras, etc.
Uma tarde ele esperou a filha levantar-se da cadeira para ir à cozinha ou cuidar de outro afazer. Então pegou os novelos de lã, as agulhas e começou a atravessá-las na peça com movimentos sincronizados, comparando de tempo em tempo o resultado do trabalho com o já produzido pela titular do serviço.
Estava bem concentrado quando a dona do tricô retornou à sala. Entregou-lhe os apetrechos e, meio sem graça, reiniciou a leitura do jornal. A filha procurou algum estrago em seu tricô e não encontrou. Apenas desconfiou que não havia interrompido o trabalho naquele ponto. Se, naquele momento, tivesse prestado atenção no homem à sua frente, veria seu meio-sorriso de satisfação.Talvez até pudesse ler em seus olhos que ele achara muito mais fácil aprender a tricotar do que levantar paredes e fazer o acabamento das obras – e nisso ele era mestre.
Tricotar era bem mais fácil e deixava a cabeça leve, os problemas esquecidos horas e horas numa parte escura da memória.
Assim, ele aprendeu a produzir sapatinhos e fez um par, de lã azul-clarinha, para o primeiro neto. Depois tricotou uma blusinha de mangas compridas da mesma cor para o bebê.
Os filhos se surpreenderam só um pouco com a nova diversão do pai. Bem melhor que o vício do cigarro, cultivado desde a juventude e só abandonado poucos anos atrás, depois de muitas ameaças dos médicos.
Não durou muito o gosto pelo tricô, mas valeu como mais uma demonstração de versatilidade daquele homem que aprendeu a tocar violão de ouvido, tinha sempre um livro à mão e evitava ensinar o significado das palavras (“Meu filho, consulte o nosso dicionário e aproveite para aprender mais, lendo também o sinônimo da palavra que vem antes e o daquela que vem depois dessa que você procura”).
Desconhecia a barreira que naquela época impedia a maioria dos homens de assumir o fogão e preparava deliciosos bolos e broas de fubá no forno a lenha, e depois no fogão a gás. “Não comam quente porque terão dor de barriga”, dizia, depois de conferir o cozimento enfiando o cabo do garfo na massa, quase deixando ler em seus olhos o real objetivo da advertência, que era o de manter os apressados a distância do fogão.
Ficou também a lembrança dos escassos períodos em que meu pai, depois dos 40, tinha condições de trabalhar. Nesses dias, levantava mais cedo cantando modinhas antigas e preparava um feijão tropeiro legítimo, com todos os ingredientes proibidos pelo médico.
Nunca mais comi feijão tropeiro com aquele delicioso sabor de transgressão, e até hoje não sei de ninguém que use com a mesma competência a colher de pedreiro e a agulha de tricô.


Ivani Cunha

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