
"...a vida dos mortos em nós não é possessão nem fantasma. Nem é morte. O mórbido é quando não conseguimos dar um lugar vivo para o morto. Então a memória fica pregada naquele momento de horror e a vida se torna impossível, porque a existência não é água parada, mas rio que corre. Acontece quando alguém, pelos mais variados motivos, não consegue fazer o luto e dar um lugar de saudade para a dor. Quando nos fixamos, num dogma ou numa falta, partes importantes de nós gangrenam. Mas quando os mortos se acomodam em nós como lembrança que muda segundo o viver de quem vive, tudo flui. Se há algo que a vida é em essência é movimento. E o luto é um movimento que reabre as portas para a vida ao romper com a rigidez da morte em nós. Por isso, para o luto não pode haver pressa, porque é grande e largo o gesto que temos de fazer acima e apesar do horror que nos atinge até mesmo em partes que nem sabíamos que existiam.
(...)
Quando sofremos uma grande perda ou somos abalroados por uma catástrofe pessoal de outro gênero, as pessoas dizem, para nos consolar e com as melhores intenções, que tudo passa. Acho que, na verdade, nada passa. A frase mais precisa seria que tudo muda. Também nós que aqui estamos como matéria um dia seremos apenas eco. Tanto pelas nossas células que alimentam e se agregam a outros seres vivos a partir da decomposição de nosso corpo como pelas histórias que transmitimos e permanecem além de nós. Aquela que fui ontem já mudou, a ruga que há um ano não existia agora é visível na pálpebra direita, minha percepção do mundo não é mais exatamente a mesma do mês passado, alterada por novas experiências que me alargaram. De certo modo, nascemos e morremos tantas vezes até o fim da vida. E é este o movimento que importa.
Queria dizer isso à amiga que perdeu a mãe de repente. Mas agora minha amiga ouve, mas não pode escutar. A dor a está comendo viva como as formigas africanas. Tudo é horror e absoluto. Mas com o tempo, um período só dela e que não pode ser determinado em parte alguma nem por ninguém, minha amiga vai começar a perceber que a mãe é uma ausência presente no formato das suas unhas, num certo jeito de mexer a cabeça quando fala, na tonalidade rara dos olhos. Está nas palavras e nas histórias que conversam dentro dela, na mitologia familiar que se perpetua, nos sons da memória. E então poderá reencontrar a mãe dentro dela. E levá-la para passear.
E, num dia que sempre chega, viverão as duas como história, como cacos de lembranças encaixados em diferentes rearranjos de vitrais, na vida dos que vieram depois. É pouco, talvez. É tudo o que temos. Eliane Brum
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